Tem-se ultimamente dado conta com mais clarividência das intenções, cada
vez mais intensificadas, de auto-determinação do povo catalão. A
questão não é, nem de perto nem de longe, uma coisa recente, e não se
afigura nos dias que correm, como algo passageiro, é sempre um tema que
adormece e ressurge de tempos a tempos.
As lutas entre Espanha e partes de si própria que desejam ser donas
do seu destino não é um assunto de agora. Durante décadas o terrorismo
da ETA fez correr sangue por toda a Espanha em prol da luta pela
independência do País Basco, terror que só viria a cessar em 2011 com a
organização a declarar um cessar fogo definitivo, assumindo o fim da
luta armada. A própria Galiza possui uma corrente nacionalista que
também defende o direito de auto-determinação do povo galego. E hoje,
outra corrente que há muito existe, o nacionalismo catalão é de todos os
nacionalismos internos espanhóis, o que se faz ouvir mais alto. A
questão que se coloca é: Porquê estas pulsões e sentimentos?
A resposta é simples à superfície, e complexifica-se à medida que se mergulha nela. Enveredemos pela simples.
A península ibérica é um espaço territorial onde coabita e coexiste
um vasto leque de povos diferentes, porém próximos. Próximos porque o
Império Romano aqui esteve presente, nesta península a quem deram o nome
de Hispânia, durante mais de 600 anos, onde nela espalhou a sua cultura
e firmou a sua língua (latim). Uniformizando as culturas já existentes
numa só, colocando-as debaixo do mesmo Estado, da mesma língua e do
mesmo culto (o politeísmo romano de culto ao imperador). Mais tarde,
após a queda do Império Romano, que se havia dividido, o povo ibérico é
invadido pelos povos Bárbaros do norte da Europa que estabelecem aqui o
Reino Visigodo, reino esse que abraça o cristianismo, religião que já
tinha sido estabelecida pelo Império Romano ainda antes do seu
desaparecimento, bem como, não apaga o latim vulgar como língua do povo,
embora as elites falassem Gótico. Por cá estiveram durante 300 anos sem
afectar a religião cristã ou o latim vulgar. No ano 711 a península é
conquistada pelos muçulmanos, que impõem uma nova língua (árabe) e uma
nova religião (islamismo). No norte da península, os reis católicos dão
início à reconquista, episódio que todos recordamos das aulas de
história, o período mais acentuado da reconquista situa-se entre os anos
914 e 1250, terminando esta em 1492 com a reconquista de Granada,
restituindo o cristianismo e o latim vulgar à totalidade da península
ibérica.
Todavia este latim vulgar já começava a apresentar diferenças dentro
de si próprio, diferenças que variavam de reino para reino. Começava a
desenvolver-se a partir do latim vulgar o Galaico-Português (que
posteriormente se dividiu entre Galego e Português), o Leonês, língua do
reino de Leão (conhecido actualmente em Portugal por Mirandês), o
Castelhano, o Aragonês e o Catalão.
Cada reino falante do latim vulgar começava a desenvolver as suas
diferenças linguísticas e culturais, porém, essas diferenças, embora
fossem notórias, era também notória ainda, a forte proximidade
linguística e cultural dos povos peninsulares, que quando comparados com
os seus “primos” latinos de França e dos Estados italianos, eram
claramente povos irmãos que apenas apresentavam irrelevantes e mínimas
diferenças culturais. E é a partir deste ponto que a história da
península ibérica começa a complexificar-se.
Os reinos ibéricos começam a fundir-se. A primeira grande fusão
acontece entre o reino de Castela e o reino de Leão. A segunda grande
fusão acontece entre o reino de Castela/Leão e o reino de Aragão (reino
composto por Aragão, Catalunha, Valência e Baleares). Outras fusões
houve, porém, para manter o raciocínio simples vamos cingir-nos apenas a
estas, pois são precisamente Castela, Leão e Aragão que cobrem quase a
totalidade do território espanhol.
Não podemos de todo esquecer o povo basco, cuja cultura e língua são
provenientes do período pré-romano, sendo a língua basca considerada
língua primitiva.
Ao longo dos tempos o estatuto político dos vários reinos foi-se
uniformizando, até chegar ao ponto de centralização em que hoje se
encontram. No caminho, o reino de Castela que era o mais vasto e mais
poderoso foi-se assumindo como o reino central de Espanha, país por onde
espalhou a sua língua castelhana, especialmente a partir do século
XVII, com especial ênfase para o período do regime de Franco, já no
século XX, onde o Castelhano foi enfiado pela goela abaixo por toda a
Espanha, ao mesmo tempo que todas as restantes línguas espanholas eram
banidas da esfera pública. Até mesmo os nomes postos a bebés
recém-nascidos tinham de ser obrigatoriamente nomes castelhanos, sendo
proibidos os nomes nas restantes línguas. Toda esta repressão ainda hoje
paira na memória dos espanhóis não castelhanos, particularmente, nos
catalães, nos bascos, nos galegos, e nos andaluzes.
Paira na sua memória uma espécie de aversão ao alegado centralismo de
Madrid. Este sentimento de revolta, motivado por uma sensação de
aprisionamento ao dito centralismo castelhano, é no fundo a justificação
que legitima os sentimentos de auto-determinação dos vários povos de
Espanha que não se querem ver submetidos a um qualquer tipo de
subordinação a Madrid, que os mesmos consideram injusta. O desejo que os
move é tão somente o desejo de liberdade. O mesmo desejo que em 1640
movia os portugueses para restaurar a sua independência da coroa
espanhola do Rei Filipe III.
Em suma, a questão da Catalunha, do País Basco, da Galiza e da
Andaluzia é exactamente a mesma questão que, em 1640, motivou Portugal a
abandonar pela força, a submissão à coroa espanhola. Porém, Portugal
sempre se verificou suficientemente poderoso para conseguir
desvincular-se de Espanha, e sobretudo, era suficientemente poderoso e
diplomaticamente astuto para se conseguir manter independente. Estatuto
de poder este, que estes reinos mais pequenos não conseguiam alcançar de
modo a consubstanciar as suas intenções de liberdade.
Chegamos agora à seguinte questão. Qual foi o preço da nossa
liberdade em 1640? Éramos finalmente livres de Espanha, mas tornámo-nos
completos vassalos dos Britânicos, que foram quem nos ajudou a
conquistar a tão desejada independência. Para um país pequeno como
Portugal, essa “independência” teria sempre um elevado custo. Quem
beneficiou com esta separação entre Portugueses e Espanhóis? Ingleses e
Franceses com os seus impérios sem dúvida nenhuma.
E é aqui que chegamos à segunda parte do raciocínio. O tabu da união
dos povos ibéricos. É um tabu, especialmente em Portugal, cuja história
que contamos de nós próprios é um longo poema de ódio dedicado a
Espanha. Interpretando a nossa Constituição da República Portuguesa, é
considerado crime de traição à Pátria, qualquer tipo de tentativa de
alienação da soberania de Portugal. É, portanto, tabu, e potencialmente,
crime de traição, pensar sequer numa união entre Portugal e Espanha.
Vamos chamar-lhe, a criação da Ibéria.
A Ibéria, passando a redundância, é aquilo que defendem os iberistas.
Estes defendem que, por partilharmos laços culturais muito próximos,
laços linguísticos muito próximos, e no fundo, por partilharmos o mesmo
espaço geopolítico que é a península ibérica, espaço territorial isolado
do resto do mundo por mar, e isolado da Europa pela barreira natural
dos montes Pirenéus, deveríamos todos, por força das circunstâncias da
nossa península, viver unidos. Pois como diz o ditado cliché, “unidos
somos mais fortes e dominaremos, separados seremos mais fracos, e
seremos dominados”.
A Ibéria seria no fundo um país de países, como o Reino Unido ou como
a Alemanha. Um Estado federal ibérico onde cada povo teria a liberdade
de viver consoante as suas próprias leis e costumes, onde nem mesmo a
existência de monarquias e repúblicas debaixo do mesmo Estado fosse um
problema. É fácil imaginar uma Ibéria constituída pela República
Portuguesa, pela Monarquia de Castela, pela República do Antigo Reino de
Aragão (Aragão, Catalunha, Valencia e Baleares), pela República Basca,
República da Galiza, República Asturiana e pela República Andaluz. Ou
por outro regime, não tendo necessariamente de ser uma república, se
assim fosse desejado pelos diferentes povos.
Tudo isto conglomerado num governo central eleito por todos os
ibéricos, assim como forças armadas comuns ibéricas. E só apenas por nos
encontrarmos incluídos num paradigma económica e monetariamente
europeu, é que não contemplaríamos uma economia ibérica e uma moeda
ibérica. Continuariamos incluídos no mercado comum europeu e na zona
euro, e obviamente, continuaríamos membros convictos da União Europeia,
porque como diz o ditado cliché, “unidos somos mais fortes” e as nações
europeias divididas, são nada mais que mero peixe miúdo num mar de
tubarões mundiais como EUA, Rússia e China. Tal e qual como os povos
ibéricos divididos, são mero peixe miúdo num mar de tubarões europeus
como Alemanha, França, ou Itália.
Contudo, esta utopia ibérica só poderia ser construída e alcançada
num ambiente de tolerância, ponderação e de abertura ao diálogo e à
negociação. Teriam, como em qualquer processo de negociação, de existir
cedências de todas as partes até ser possível alcançar um acordo
político comum, mas sobretudo, exequível.
E é precisamente este ambiente que não existe hoje entre
independentistas e “espanholistas”. Aquilo que se vê, quer por parte do
governo da Catalunha, quer por parte do governo central de Espanha, é
puro incentivo a um clima de promoção da desarmonia, da desordem e de um
proto-terrorismo urbano. Não se deseja para Espanha uma guerra de
libertação ao estilo da guerra da Jugoslávia, ou o ressurgimento do
terrorismo separatista. E para tal, existe a política, o bom-senso e o
diálogo. Utensílios que têm estado a ser desconsiderados por ambas as
partes. O que poderá conduzir quer Espanha, quer a Catalunha, para uma
batida forte no fundo do precipício.
Pede-se mais diálogo. A bem da credibilidade dos povos desta península.
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Fonte: https://www.tribunaalentejo.pt/artigos/da-questao-da-catalunha-ao-tabu-da-uniao-iberica