O homicídio de um comando no quartel da Carregueira (Sintra) há dois meses tem ainda várias pontas soltas, apesar da detenção do principal suspeito, esta quarta-feira. Luís, um militar madeirense, terá sido morto com um tiro nas costas disparado da G3 de “Django”, nome de guerra do alegado homicida, também comando, quando este fazia a vigilância aos paióis do Regimento na tarde de 21 de setembro.
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© FOTO TIAGO MIRANDA Morreram dois recrutas no curso 127 dos Comandos, que se realizou nos últimos meses de 2016 |
As autoridades chegaram a pensar na hipótese de suicídio, mas as perícias forenses orientaram a investigação da Polícia Judiciaria Militar (PJM) noutra direção: havia vestígios de pólvora na mão e braço de “Django”, guineense de 21 anos que tinha estado em missão na República Centro-Africana entre setembro de 2017 e março deste ano. Além disso, a posição da arma junto ao corpo da vítima, e a entrada da bala terão deitado por terra a tese inicial.
Foi “Django”, alcunha inspirada no filme de Quentin Tarantino com o mesmo nome, que avisou os responsáveis no quartel da Carregueira do incidente com Luís. E chegou a ser ouvido como testemunha no caso, de acordo com a TVI.
O seu nome não era desconhecido dos inspetores da PJM. Às 9h25 de 29 de setembro de 2016 foi interrogado, também como testemunha, num dos processos mais traumáticos para o Exército português: o das mortes suspeitas de Hugo Abreu e Dylan Silva durante a prova zero no campo de tiro de Alcochete, num dos dias mais quentes desse ano.
Este militar tinha sido colega dos dois instruendos no curso 127 dos Comandos, que começara no início desse mês. Na inquirição, a que o Expresso teve acesso, o jovem militar disse não ter visto qualquer instrutor a bater em recrutas, não se ter apercebido de camaradas a desmaiar ou vomitar nem de ter sido alvo de qualquer tipo de violência verbal ou física. “Quero terminar o curso por orgulho próprio. É um sonho meu”, afirmou à PJM.
As duas mortes em Alcochete deram origem a uma investigação. “Django” surge também no despacho de acusação da procuradora Cândida Vilar. “Os ofendidos do grupo P2 [de que fazia parte], com receio, saltaram uns em cima dos outros para o interior das silvas. Rastejaram nas silvas, motivo pelo qual se lesionaram na face, braços, mãos, cotovelos e pernas com feridas que não foram tratadas, provocando dores. Continuaram a praticar exercícios no solo com feridas expostas.”
O julgamento de 19 militares do Exército, acusados de 539 crimes cometidos durante o curso 127 dos Comandos, começou há dois meses. Esta semana realizaram-se mais algumas sessões. Uma fonte judicial garantiu que estava previsto que “Django” fosse ouvido nos próximos dias no âmbito deste processo como testemunha da acusação. “O seu depoimento no tribunal fora antecipado porque o militar estava para embarcar de novo em missão para a República Centro-Africana.” Agora, dificilmente será chamado a depor como testemunha.
LOW PROFILE E CUMPRIDOR
A detenção deste comando, que vive na linha de Sintra com as tias e os avós, causou espanto entre colegas e instrutores, que o descrevem como uma pessoa low profile, calma e disciplinada. “É difícil acreditar que tenha assassinado alguém. Ainda para mais um colega. É um homem tranquilo e extremamente pacífico”, descreve um oficial que o conhece desde a prova zero em Alcochete. E acrescenta: “Como militar, cumpre, mas não se destaca.”
O Expresso entrevistou-o duas vezes no âmbito de um projeto sobre a formação dos comandos, uma delas quando se encontrava em missão com as tropas portuguesas na República Centro-Africana. “É uma experiência incrível, uma outra realidade. É a forma de pôr em prática tudo o que treinámos em Portugal.” Revelou também que a sua função era a de “apontador” numa torre de vigia. “Não é fácil, às vezes é complicado mas é fixe”, resumiu.
Contactada pelo Expresso, uma familiar de “Django” não se alonga no caso, limitando-se a afirmar que segue de perto o trabalho da advogada que o acompanhou no primeiro interrogatório judicial no Tribunal de Sintra.
Já os familiares da vítima de 23 anos mostraram-se incrédulos com a primeira versão dos acontecimentos, logo nos dias seguintes à morte no Centro de Tropas Comandos, não acreditando que Luís tivesse pedido uma arma emprestada a “Django” para se matar de seguida. Uma psicóloga e um padre disponibilizados pelo Exército prestaram ajuda aos pais do rapaz que entrou nos Comandos em 2015 e esteve igualmente em missão na República Centro-Africana.
Em setembro, uma cunhada testemunhou à RTP que durante as últimas férias na ilha da Madeira, o jovem terá contado que andava a ser ameaçado por um colega, sem no entanto revelar identidades ou graduações militares.
Nessa altura, o jornal “i” revelou que a 21 de setembro o oficial de dia na Carregueira era um dos 19 arguidos da investigação às morte no curso 127 e que não estava legalmente impedido de exercer as suas funções.
CRONOLOGIA
TREINOS EM ALCOCHETE
A 4 de setembro de 2016, primeiro dia de recruta do curso 127 dos Comandos, vários soldados são assistidos na tenda de enfermagem. Nesse domingo, a temperatura ronda os 40 graus.
DOIS MORTOS
Os recrutas Hugo Abreu e Dylan Silva morrem durante Prova Zero, a primeira prova do curso de Comandos. Tinham ambos 20 anos e eram dos mais dedicados do curso, de acordo com vários testemunhos.
150 TESTEMUNHOS
Polícia Judiciária Militar (PJM) e Ministério Público ouvem 150 testemunhas. Os depoimentos revelam-se determinantes para as autoridades perceberem com nitidez o filme dos acontecimentos no campo de tiro de Alcochete.
ACUSAÇÃO VIOLENTA
Em junho, o Ministério Público acusa 19 militares do curso (oito oficiais, oito sargentos e três praças) por 539 crimes de abuso de autoridade e ofensa à integridade física. O MP não tem dúvidas: houve violência, castigos, agressões, humilhação e racionamento de água dos instrutores sobre os recrutas.
LIMITAÇÕES NO EXÉRCITO
Um elemento do Exército revelou à juíza de instrução a existência de muitas limitações de ordem logística nas Forças Armadas, para justificar as falhas nos cursos de Comandos.
PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO
As famílias das duas vítimas mortais constituíram-se assistentes no processo e reclamam dos arguidos 700 mil euros. No pedido de indemnização civil os pais de Dylan Silva querem 400 mil euros enquanto a família de Hugo Abreu pede 300 mil.
INÍCIO DO JULGAMENTO
O julgamento às mortes no curso 127 iniciou-se a 4 de outubro. Numa das sessões, o investigador da PJM Vasco Brazão (arguido na Operação Húbris) revelou que quando chegou a Alcochete viu “arranhões e feridas em carne viva” nos joelhos e cotovelos de Hugo Abreu.
NÚMERO
23
instruendos terminaram o curso 127 em novembro de 2016. No total, houve 42 desistências, 27 das quais a pedido dos instruendos e as restantes por indicação médica ou inaptidão física. Um recorde negativo para o Exército.